As pessoas deveriam tomar a sensibilidade de alguns futebolistas como uma espécie de lição artística. Há em muitos jogadores da história um senso de criação, amparado por jogadas bonitas, precisas, que remetem a antigos gladiadores divertindo imperadores romanos enquanto desviavam de tigres com circunspecção e urgência de viver.
No filme A Mão de Deus, o personagem principal é salvo de uma tragédia familiar que matou seus pais, devido a uma viagem que fez para assistir o Diego Armando Maradona jogar numa cidade vizinha. 'Você foi salvo pela Mão de Deus', lhe diz um tio fazendo referência ao apelido que o jogador ganhou depois de um gol de mão fundamental numa partida decisiva.
Há momentos na vida, desencantado pelo tédio da rotina, em que mediante momentos de grande beleza, eu penso: isto é a mão de Deus. O lento cair da chuva em uma cidade quente, uma passagem irretocável em um romance, uma cena fabular de um quadrinho ou filme. Pessoas que produzem arte com o mesmo ímpeto que o Maradona invadia defesas com sua sede de artífice — meio meia, meio atacante.
São maus os tempos em que artistas precisam ser lembrados de que a beleza em si importa. Houve uma época em que a amoralidade de uma atleta era irrelevante mediante sua familiaridade com a bola em jogadas que sempre serão um clássico triunfante. A beleza importava. Em todo o seu esplendor amoral e apolítico, e para muitos adversários, aterrorizante.
Hoje a beleza precisa pedir desculpas por ser tão bela. Os tempos clamam novos Maradonas, mas também uma torcida com esse senso amoral, como o de antes. É preciso nos educar para o que há de incorreto em cada belo. Afinal, a beleza da 'mão de Deus' irreleva toda vulgaridade do mundo dos homens em seu fascínio embasbacante.
Mas é necessário que treinemos nossa sensibilidade novamente para ela.
Talvez esta sensibilidade estética coletiva algum dia retorne a todos nós. Contudo hoje em dia, o bombardeamento de imagens e informações não incentiva a contemplação, a observação. Estamos correndo o tempo todo, só não sabemos para onde.